Por José Roberto Cabrera
A iniciativa do FPN em publicar essas reflexões acerca do golpe de 1964 e da ditadura instalada até 1985 revela a percepção de que o entendimento e a narrativa sobre os problemas e desafios do presente estão fortemente articulados com as experiências históricas, suas trajetórias incompletas e contradições latentes.
Conforme já apontado nesse espaço tal processo deixou marcas sociais, econômicas, políticas, ideológicas e ambientais, cujas cicatrizes estão entre nós e desenham muitos desafios a superar.
Durante os 21 anos em que monopolizaram o Executivo Federal, a ditadura civil e militar implementou políticas econômicas fortemente ancoradas numa lógica de ampliação das estruturas de exploração da natureza, potencializadas pelo capital nacional e estrangeiro, que utilizaram do aparato estatal para ampliar seus ganhos, se apropriar dos territórios e usufruir dos investimentos públicos em todas as dimensões.
A conjuntura nacional impõe refletirmos profundamente sobre os efeitos e persistências desse período, considerando o ressurgimento, a rearticulação política de seus apoiadores e de sua ascensão eleitoral.
Nessa direção, a despeito da larga literatura produzida sobre a ditadura e seus desdobramentos políticos e ideológicos, seguem algumas considerações sobre o período e o modo como suas práticas permanecem sob nova roupagem
O atual presidente, cujo nome não será mencionado nesse texto, refere-se com orgulho sobre o referido período, destacando aspectos que julga positivos, entremeando elogios à torturadores e aos governantes que nunca se submeteram a algum escrutínio popular. Na prática promove o lema de Juscelino Kubitschek ao contrário, buscando fazer retroceder 50 anos em 5.
Embora a ditadura tenha vivido várias fases, algumas com a presença ativa do Estado na condução de projetos de expansão das atividades econômicas dentro de uma lógica submetida aos interesses do grande capital, o vínculo ideológico da equipe do Planalto parece estar afinado com a perspectiva do ditador Costa e Silva que afirmava que: “Precisamos fazer com que os ricos fiquem cada vez mais ricos, para que graças a eles os pobres fiquem, por sua vez, menos pobres.”(sic) Ou seja, a melhoria das condições do povo depende da acumulação de capitais. Situação levada ao extremo pela direção econômica do banqueiro Paulo Guedes.
Persiste no interior do bloco governante, à despeito de todo o avanço científico das últimas décadas, a perspectiva de que a natureza é recurso a ser explorado e que os povos tradicionais são obstáculo ao desenvolvimento. No vácuo dos projetos fracassados da ditadura, existe uma reapropriação do discurso acerca do potencial econômico da Amazônia e de outros biomas que, ao dispor do homem branco, devem servir de mecanismos para o acúmulo de capital e o progresso. Aqui, madeireiros, mineradoras, o agronegócio, as forças armadas e o governo bravejam contra todos os que saem em defesa da natureza, tratando-os como entraves, à serviço de interesses estrangeiros, que impedem o crescimento e a superação da pobreza.
Pensar um novo tipo de relação econômica que nos permita estancar ou diminuir os efeitos da crise ambiental que enfrentamos implica em fazer a disputa e derrotar o modelo em curso. É uma questão de sobrevivência da vida na forma como a conhecemos.
A permanência de uma cultura autoritária
Existe no Brasil uma cultura autoritária que entende que a força e a violência são as únicas alternativas à desordem. Isso não é criação da ditadura, mas o período exacerbou essa lógica. Nas redes sociais, na mídia, que explora comercialmente o potencial da violência ou nos discursos políticos, o combate à violência com mais violência se mostra como alternativa aos problemas do cotidiano. Sempre se aborda o recurso final, nunca a prevenção. Fica a impressão de que ninguém quer prevenir nada. E, neste contexto a repressão apresenta-se como a alternativa mágica e de grande potencial eleitoral.
A impunidade como modus operandi da política nacional
A impunidade é uma instituição nacional e para não fugir dessa prática a ditadura impôs a Lei de Anistia que tomou precauções para que as violações cometidas pelos militares e seus aliados, dentro ou fora das instituições do Estado, não pudessem ser apuradas, uma vez que os torturadores também foram anistiados. Essa situação reforçou a percepção de que o tratamento dado àqueles que cometem crimes em nome de uma ‘ordem’ social é diferente em relação aos outros tipos de delitos, devendo ser avaliados de forma distinta.
Essa forma de abordar o tema pode ser verificado no modo como as Polícias Militares atuam ainda no Brasil. A lógica de militarizar os conflitos, criminalizar os movimentos sociais é só parte da questão. As polícias militares continuam matando impunemente. São constantes violações aos direitos do cidadão e o tratamento dispensado tem sempre a mesma lógica: a violência.
Num Estado democrático, amparado numa ordem constitucional legítima, é necessário que haja tratamento igual aos indivíduos e, enquanto a verdade sobre os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura não vierem à luz, continuaremos parados no meio do caminho.
Nos outros países do Cone Sul que viveram ditaduras trataram, cada um a seu modo, o problema. Na Argentina as violações foram proporcionalmente muito maiores e o processo de fim do regime obedeceu a uma lógica própria, no Uruguai e no Chile também. Argumentar que a tragédia tenha sido maior e que, portanto, não cabem comparações, é ignorar que para quem perde um pai, filho, mãe, esposa ou companheiro não há tragédia comparável.
Repressão e Direitos Humanos .
A ditadura consolidou uma estrutura repressiva eficaz. Desestruturou uma boa parte das organizações políticas e destruiu fisicamente muitos de seus opositores. O próprio governo criava as leis e enquadrava seus opositores.
De acordo com Carvalho, no primeiro ato do governo Castelo Branco, o AI-1, 2990 pessoas foram atingidas, 513 deputados, senadores e vereadores perderam seus direitos políticos; 35 dirigentes sindicais; no período foram aposentados ou demitidos 3783 funcionários públicos e 1313 militares que se opuseram ao golpe.
Desde o primeiro momento a repressão foi uma infeliz marca dos governos militares, permitindo a tortura e o assassinato. Apoiada por setores do empresariado nacional, a estrutura repressiva existiu e ganhou quase como uma vida própria durante a década de 1970. Certas coisas não se justificam, mas os saudosistas de plantão falam em que o governo combatia guerrilheiros e terroristas e o problema está aqui. Várias organizações políticas e opositores, que não recorreram à luta armada também sofreram pesada repressão e muitos foram assassinados. Algumas organizações que optaram pelo enfrentamento o fizeram como forma de resistência, pois estavam sendo perseguidos e torturados. Como a Carta de Direitos Humanos da ONU qualifica a tortura como crime contra a humanidade, os ditadores e seus apoiadores civis criaram um sistema paralelo de repressão política onde os torturadores, soldados, viaturas e casas eram clandestinas, eximindo, portanto, o Estado da responsabilidade de muitas das mortes ocorridas no período. Esse modelo continua na ação das milícias e dos grupos de segurança privados, que estão entrelaçados com os membros da família no poder.
O momento é grave, a ditadura acabou faz tempo e seus fantasmas continuam perambulando e saindo eventualmente dos esgotos. O que esse tempo nos ensinou é que as estruturas sociais e políticas construídas por mais de duas décadas no Brasil não se desarticularam e nem desapareceram. Elas foram mantidas e continuaram se desenvolvendo dentro das estruturas do Estado e da sociedade. Nenhuma administração se mantém por tanto tempo sem algum grau de articulação e apoio. Isso ficou evidente nas bases sociais e políticas que sustentam um governo com mais militares em postos da administração do que na época da ditadura e que, ao mesmo tempo, estabeleceu vínculos orgânicos e ideológicos com frações da burguesia e das classes médias, que sustentam a catástrofe ambiental e humanitária em curso.
Mas resistir, persistir e sonhar são virtudes das quais não abrimos mão e continuamos caminhando…
Amanhã, mesmo que uns não queiram
Será de outros que esperam
Ver o dia raiar
- G. Arantes
Referências:
1 Peres, Isabela K. Passando a boiada”: a histórica relação entre ditadura e destruição da natureza no Brasil
2 Breyton, F. Rastros da ditadura no campo brasileiro
3 Carvalho, Ana F. genocídio Indígena durante a Ditadura Militar
4 Carvalho, José Murillo. Cidadania no Brasil, o longo caminho, Rio de Janeiro : Civ. Brasileira, 2008, pg. 164