Por: Isabela Kojin Peres
Falar sobre a ditadura militar no Brasil, que agora no mês de abril completou 57 anos, nunca é demais, especialmente enquanto ainda existem pessoas e grupos que a defendem – seja por ignorância do que realmente foi a ditadura, seja por identificação a ela, como é o caso de Bolsonaro e seus filhos. Portanto, é importante falar no sentido de “LEMBRAR PARA JAMAIS ESQUECER, PARA QUE NUNCA MAIS ACONTEÇA”.
Gostaria de ressaltar outro fator que torna esse debate fundamental: a disputa de narrativas sobre a história (e, logo, sobre a ditadura), pois, como disse Marcos Silva, “[o] tempo histórico não é um conjunto de datas vazias, e sim um universo de experiências sociais, suporte de múltiplas propostas” (2020, p. 37). Algo que afeta não apenas a construção da memória do país, mas também os projetos societários no presente e as perspectivas de futuro.
Isto porque, se o regime político da ditadura militar teve um tempo determinado de existência, seu legado, suas marcas e sua ideologia permanecem. E permanecem tanto de maneira explicita e intrínseca – nas mentes, corações, corpos e territórios daquelas/es que foram perseguidos, torturados e assassinados até às questões fundamentais da sociedade como o modelo econômico e a estrutura agrária – ainda que alguns atores busquem torná-las escusas. Por isso, a ditadura deve ser continuamente desvendada e desvelada em todas suas facetas e desdobramentos, entre os quais trago a destruição da natureza.
Solano José/ Estadão
A destruição da natureza foi um ponto estruturante do regime de opressão caracterizado como ditadura militar. E embora seja uma marca fundante e constante na história do Brasil desde a invasão portuguesa, na época desenvolvimentista pós-Segunda Guerra, quando ocorre a ditadura, ela se aprofunda e amplia no território nacional, graças ao avanço técnico-científico hegemônico organizado enquanto “Revolução Verde”.
Além dos impactos socioeconômicos e culturais diversos, uma característica marcante desse projeto é a extensa e intensa ocupação da Amazônia sob postulados como “Integrar para não Entregar” e “terras sem homens para homens sem terras”, com a venda de terras para o capital estrangeiro (e consequentemente o aumento da concentração agrária); a violência contra camponeses, comunidades tradicionais e povos indígenas (com a expulsão de seus territórios de vida, a chegada de doenças e mesmo assassinato e escravização); a construção de grandes obras e a correlata migração de um contingente populacional necessária como força de trabalho.
Propaganda do Ministério do Interior - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) na revista Veja, dezembro de 1970
Tudo isso acontece com incentivos do Estado como concessões de créditos, subsídios e incentivos fiscais e investimentos através da SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) e o BASA (Banco da Amazônia), estabelecendo um padrão de acumulação na região baseado na implantação de grandes projetos madeireiros, agropecuários e minerais comandados por grupos econômicos e financeiros nacionais e internacionais (PERES, 2020). O que possibilitou uma maior incorporação dos interesses ligados a esses capitais na máquina do Estado fortalecendo o velho capital agrário e propiciando uma coalização de interesses de distintos grupos em torno da especulação fundiária (PALMEIRA, 1989, p. 100) que permanece até hoje, articulada principalmente na figura da Bancada Ruralista.
Vale ressaltar ainda que esse processo de ocupação estava diretamente atrelado a obrigatoriedade do desmatamento da floresta Amazônica e da destruição de seus ecossistemas, apoiando-se nas ideias (falsas e equivocadas) de que “meio ambiente é um empecilho ao desenvolvimento” e da floresta “tanto como um vazio a ser ocupado, quanto um objeto a ser usado”.
Esse projeto degradador, excludente e injusto, se escondeu sobre uma roupagem nova. O texto da semana passada “Rastros da ditadura no campo brasileiro”, do companheiro Fred Breyton, já apontou que o “modelo agroindustrial emplacado pela Revolução Verde, com seu caráter concentrador da propriedade rural, está na origem da estrutura contemporânea do agronegócio latifundiarista brasileiro”. Sim, esse mesmo “Agro é Pop, Agro é Tech, Agro é tudo!” que costuma passar na televisão
Portanto, o projeto da ditadura militar foi de uma “modernização conservadora” que perpetuou a lógica neoextrativista predatória, baseada na “acumulação primário-exportadora, resultado de um modelo de desenvolvimento capitalista, periférico e dependente” (ACOSTA, BRAND, 2018) e que hoje é também a base do projeto Bolsonarista: o “passar a boiada”.
Olhar para esta história ajuda a compreender como chegamos ao cenário atual, não apenas de destruição da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal, mas de crise ambiental global. A crise do fim de um mundo, como diz Ailton Krenak. No entanto, esta é apenas uma face da história, pois há o lado das diversas lutas de resistência dos seres e povos da floresta , do campo e da cidade. E, se queremos apoiar, fortalecer e articular essas lutas (como o Fórum Popular da Natureza vem buscando fazer), é necessário contar a história com verdade, desvendando e desvelando a ditadura militar, como disse no início desse texto. Podemos mais do que isso. Se a destruição da natureza é eixo estruturante do projeto da modernidade, seja ele na colonização portuguesa, na ditatura militar ou agora na democracia atacada pelo neoliberalismo e pelo autoritarismo, a defesa pela conservação e recuperação da Natureza deve ser o eixo do projeto democrático ecossocialista e do bem viver.
Notas de rodapé:
- Ligados, sobretudo, a expulsão dos trabalhadores e dos camponeses do campo e o êxodo rural;
- Eram realizados leilões de terras públicas que “beneficiavam, pelo tamanho dos lotes vendidos (500 a 3.000 hectares), pela inexistência de limitações à aquisição de vários lotes por um mesmo grupo e de exigências como aquelas que se antepõem ao reconhecimento de posses, além da própria mecânica dos leilões e de todo o ritual envolvido (editais, projetos, etc.) que excluem os que não têm recursos para cobrir lances e os que não dispõem de recursos financeiros e culturais para sequer entrar na parada, que beneficiavam grandes fazendeiros e grupos econômicos nacionais e estrangeiros interessados na terra como reserva de valor” (PALMEIRA, 1989., p. 97);
- Texto da Figura 2: Muitas pessoas estão sendo capazes, hoje, de tirar proveito das riquezas das Amazônia. Com o aplauso e o incentivo da SUDAM. Com o aplauso e o incentivo do Banco da Amazônia. O Brasil está investindo na Amazônia e oferecendo lucros para quem quiser participar desse empreendimento. A Transamazônica está aí: a pista da mina de ouro. Comece agora. Faça sua opção pela SUDAM. Aplique a dedução do seu imposto de renda num dos 464 projetos econômicos já aprovados pela SUDAM. Ou então apresente seu próprio projeto (seja ele industrial, agropecuário ou de serviços). Você terá todo o apoio do Governo Federal e dos governos dos Estados que compõem a Amazônia. Há um tesouro à sua espera. Aproveite. Fature. Enriqueça junto com o Brasil. Informe-se nos escritórios da Sudam e nas agências do Banco da Amazônia
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Referências:
ACOSTA, A.; BRAND, U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. Tadeu Breda (tradução). São Paulo. Editora Elefante. Autonomia Literária. 2018. 224 p.
PALMEIRA, M. Modernização, Estado e Questão Agrária. Estudos Avançados. 1989. P. 87-108.
PERES, I. K. O golpe da motosserra: a alteração do Código Florestal e o avanço da barbárie ambiental no cenário pós-golpe de 2016. In: LEONÍDIO, A. et al (org). Golpe e Democracia no Brasil. 1ª ed. São Paulo. Hucitec. 2020. 392 p.
SILVA, M. Brasil, ditadura em ditadura: as exceções foram democracia (fins do século XIX/começo do século XX). In: LEONÍDIO, A. et al (org). Golpe e Democracia no Brasil. 1ª ed. São Paulo. Hucitec. 2020. 392 p.