Insegurança alimentar e o injusto acesso à terra

A pandemia que vivenciamos hoje coloca a questão da alimentação e do abastecimento em grande destaque na sociedade. O isolamento social, importante para reduzir o alcance da contaminação pelo vírus, impõe também dificuldades para o acesso aos alimentos, principalmente pelas populações de baixa renda. Durante a crise, as pessoas mais vulneráveis enfrentam uma brusca perda da renda que é usada, principalmente, para a compra de alimentos. A pandemia evidencia e amplia as desigualdades estruturais nos nossos sistemas alimentares e as insuficiências dos nossos programas de segurança social, expondo as inúmeras vulnerabilidades dos sistemas agroalimentares não só no Brasil, mas em todo o mundo.

Nos EUA, de acordo com a Feding American - organização estadunidense de combate à fome - um número sem precedentes de pessoas recorreu aos bancos de alimentos para o suprimento de emergência, desde que a pandemia do Coronavírus provocou demissões generalizadas no país. Estima-se que pelo menos 17,1 milhões de pessoas passarão a enfrentar insegurança alimentar nos EUA nos próximos meses, um aumento de 46%. O relatório global do Programa Mundial de Alimentos adverte que a fome pode dobrar em todo o mundo. Segundo dados da FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, em 2015, 785 milhões de pessoas se encontravam em situação de insegurança alimentar, em 2018, este número aumentou para 821 milhões.

Existem várias causas para o aumento de famintos no mundo (e todas se relacionam ao modo de produção capitalista globalizado): as guerras civis (conflitos prolongados) e o aumento na frequência e intensidade dos eventos climáticos extremos são alguns exemplos.

No Brasil, em 2018, 13,5 milhões pessoas tinham renda mensal per capita inferior a R$ 145, critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza. Projeções do Banco Mundial indicam que, até o final de 2020, esse número deve chegar a até 14,7 milhões de pessoas, o que representa 7% da nossa população. Número suficiente para o país voltar para o mapa da fome.

Uma crise sanitária como esta que estamos vivenciando pode fortalecer, também, a tendência que já se observa em famílias de baixa renda: o aumento do consumo de “alimentos” ultraprocessados. O preço deste tipo de alimento vem caindo ao longo dos anos em comparação com os alimentos in natura. Por outro lado, estamos observando, na pandemia, o aumento nos preços dos alimentos in natura, que já pode ser notado nos supermercados. Segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA-15, que é um índice do IBGE, a alta dos alimentos in natura neste ano chegou a 24,63%. O feijão carioca apresentou uma variação de 28,09% em abril, e agora vemos a alta no preço do arroz.

No cenário atual, estoques públicos de alimentos poderiam ser utilizados para controlar a instabilidade de preços dos alimentos. De acordo com José Graziano da Silva, ex-presidente da FAO, não há estoques de alimentos para essa regulação de preços no Brasil. Essa falta de estoques ocorre também em função dos desmontes das políticas de fortalecimento da Agricultura Familiar, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Este último teve o auge em 2012, quando foram alocados 1,2 bilhões de reais e atendidos 185 mil agricultores familiares. Apesar de ainda ser um número muito pequeno diante do universo de agricultores familiares no Brasil, foi um programa que promoveu um grande avanço para o campesinato. Desde 2012, o volume de recursos colocados no Programa (PAA) vem diminuindo.

O Estado tem a obrigação de atender o direito humano à alimentação saudável, permanente e constante. As múltiplas crises atuais escancaram nosso afastamento da luta pela soberania alimentar e o desmonte das tímidas políticas pela segurança alimentar e nutricional.

Como falar em soberania alimentar se não garantimos nem que as pessoas tenham o que comer? Como falar em soberania alimentar se não garantimos terra para as comunidades do campo terem onde plantar?

Segurança alimentar significa garantia de alimentos saudáveis, de qualidade e sem veneno. Tíquetes e vouchers, em geral, são gastos nos supermercados, o que fortalece grandes redes e não estimula a produção local e familiar. O alimento não pode mais ser visto como uma mercadoria: precisa ser tratado pela importância que carrega consigo: a de nutrir pessoas. Desse modo, a segurança alimentar e nutricional passa por questões de várias dimensões, como: acesso à terra, reforma agrária, reforma urbana, acesso a alimentos sem agrotóxicos e a preços acessíveis.

Precisamos pensar em políticas públicas que garantam não somente a compra de alimentos da agricultura familiar e da agroecologia, mas que esses alimentos cheguem às populações mais vulneráveis. Os agricultores familiares continuam produzindo no cenário da pandemia, mas enfrentam dificuldades no escoamento dessa produção. Seguindo a linha da coletividade e da solidariedade, a produção de alimentos de modo agroecológico também funciona na lógica da cooperação e da popularização do consumo de alimentos saudáveis, não restringindo-o apenas às classes mais privilegiadas da sociedade.

Também observa-se, atualmente, algumas formas de comercialização que (re)conectam a agricultura rural familiar à população urbana, especialmente aquela formas ligadas aos circuitos curtos de comercialização, como distribuição de cestas. A demanda por alimentos produzidos sem o uso de venenos tem aumentado durante a pandemia. Somado a isso, a crise tem mostrado o valor imaterial das redes de solidariedade que se espalharam pelo país, destacando-se o trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Este movimento tem realizado ações em 24 estados, onde já foram doadas mais de 1.200 toneladas de alimentos, mais de 25 mil litros de leite e mais de 40 toneladas de leite em pó. Além disso, as marmitas solidárias continuam acontecendo nos estados por meio dos Armazéns do Campo, lojas do MST, atendendo parte da população em situação de rua. Todas essas ações, já tradicionais dentro do movimento, representam uma forma de diálogo com a sociedade, ressaltando o valor da solidariedade de classe entre o campo e a cidade, e revertendo o papel da mídia de propagar calúnias difamatórias sobre o movimento.

Texto extraído da fala de Vanilde Esquerdo - Professora da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp -, no Diálogo entre campo, cidade e floresta: desafio da produção e distribuição de alimentos saudáveis no contexto da pandemia, que pode ser acessado aqui. A conversa foi realizada durante a Jornada Universitária pela Reforma Agrária (JURA) de 2020, organizada em uma parceria entre a Unicamp e o Núcleo PCJ do Fórum Popular da Natureza.

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