O arroz com feijão, combinação brasileiríssima que garante todos os aminoácidos essenciais para organismo, não é mais um elemento trivial no prato das famílias. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) interpreta o contexto atual por seus elementos conjunturais que constituem a grave situação em que estamos vivendo, mas que não se desvincula dos processos estruturais. Assim, os aspectos de formação social e econômica da sociedade são bastante desfavoráveis à Reforma Agrária e agravam ainda mais a crise causada pela Covid-19.
O modelo de distribuição de terras imposto por Portugal ao Brasil Colônia - que começa com capitanias hereditárias, passando pelas sesmarias, e depois, se consolida como propriedade privada capitalista, na primeira Lei de Terras de 1850, - está presente até os dias de hoje.
Podemos notar que essa desigualdade fundiária persiste quando observamos que, aproximadamente, 1/4 da terra agrícola no Brasil é ocupada por 0,3% do total de imóveis rurais. A maior parte dos camponeses e dos trabalhadores rurais não têm acesso à terra. Ou, quando conseguem, muitas vezes, o solo apresenta baixa fertilidade devido ao desgaste anterior causado pela monocultura, limitando o desenvolvimento de atividades agrícolas até mesmo de subsistência. Somado a isso, há poucas políticas públicas voltadas para esses trabalhadores rurais.
A reforma agrária objetiva romper com essa herança colonial do grande latifúndio para promover a justiça social, garantindo terra para camponeses e trabalhadores rurais das grandes fazendas do agronegócio. Visa, também, promover uma política de desenvolvimento para o território brasileiro, pois, para os trabalhadores urbanos, a reforma agrária trará benefícios devido à geração de empregos no campo. Além disso, promoverá a oferta de alimentos saudáveis e a preços baratos para a cidade, o que produzirá impactos imediatos na sociedade brasileira. Por isso, a redistribuição de terra deve ser implementada prioritariamente perto dos grandes centros urbanos, em locais de difícil acesso e escoamento da produção.
Por outro lado, a reforma agrária promoverá um grande acerto de contas com a democracia brasileira, pois é o grande latifundiário que mantém a bancada ruralista no Congresso Nacional, pressionando parlamentares por meio de lobby. Essa bancada vota em favor dos interesses dessa classe que concentra poder político e econômico e que têm objetivos divergentes da grande maioria da população. Enquanto suas contas bancárias estão recheadas de dinheiro, 5,2 milhões de brasileiros passam fome.
A oligarquia agrária, juntamente com a burguesia industrial, impulsionaram a Ditadura Civil-Militar de 1964 e o Golpe Parlamentar de 2016. Essa mesma oligarquia apoia a atual forma de gestão antidemocrática, conservadora e retrógrada, que, nas palavras do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, quer aproveitar o cenário da pandemia para “passar a boiada”. Esse apoio da bancada ruralista vem desde suas fazendas às sedes dos municípios, influenciando as instâncias jurídicas e policiais em nível federal.
Dessa maneira, ao desmontar essa estrutura que confere um poder assimétrico ao setor do agronegócio, a reforma agrária se torna não somente uma medida social e econômica, mas uma maneira eficaz de assegurar o verdadeiro princípio da democracia no Brasil. Coloca-se, assim, limites à oligarquia agrária, ao coronelismo e suas formas de expressão jurídica, política e cultural. Consequentemente, enquanto esse projeto não for implementado, é impossível pensar em uma real democracia e na construção de um país soberano.
Além disso, a discussão atual sobre a reforma agrária fundamenta-se na construção de um novo projeto de sociedade, balizada pelas demandas que o século XXI nos impõe. Sejam:
a soberania alimentar, o respeito a natureza, o diálogo permanente com a sobrevivência do ser humano enquanto espécie nesse planeta.
Esse projeto se opõe ao agronegócio, que é um modo de produção altamente predatório, fundamentado na demanda crescente de insumos químicos sintéticos, obtidos pela extração de petróleo. Também utiliza, permanentemente, grande quantidade de agrotóxico na produção de suas lavouras, envenenando os alimentos e contaminando as águas e os solos. O país consome, em média, 7 litros per capita de veneno a cada ano, o que resulta em mais de 70 mil intoxicações agudas e crônicas em igual período.
O projeto de reforma agrária do século XXI busca - além de assegurar o direito de acesso à terra aos camponeses, às comunidades quilombolas, às comunidades tradicionais, aos indígenas, aos ribeirinhos -, repensar o modo de produção, na perspectiva da relação com o meio ambiente e da relação com a cidade. A alimentação deixa de ser entendida como mercadoria, porque é um direito; isto é, representa uma necessidade humana, principalmente se considerando a grave crise alimentar que ocorre nas periferias dos grandes centros urbanos.
Os produtos ultraprocessados vendidos pelas grandes corporações agroindustriais, e que estão sendo largamente consumidos pela população, apresentam valor nutricional baixo e os conservantes e aditivos contribuem para o desenvolvimento de doenças, tais como: hipertensão arterial, diabetes, entre outras.
Para tanto, é necessário adequar o modo de produção que permita a oferta de alimentos saudáveis, por meio de formas modernas de produção como a agroecologia. Assim, a reforma agrária objetiva ser um mecanismo de oferta de alimento de qualidade para a mesa do trabalhador da cidade, dialogando diretamente com os anseios da população brasileira.
Outro aspecto relevante é o fato de o agronegócio ser extremamente dependente do mercado internacional, pois produz majoritariamente para a exportação, deixando de lado produtos básicos utilizados na alimentação da população brasileira. Como ele está subordinado à “saúde” da economia mundial, a diminuição da demanda por matéria prima, principalmente da China, da Europa e dos Estados Unidos, causa grande impacto no agronegócio brasileiro. Porém, como o objetivo principal do agronegócio - senão o único - é maximizar o lucro, cada nova demanda internacional significa novas áreas desmatadas na Amazônia ou no Cerrado. E isso, muitas vezes, significa um ataque às terras indígenas e quilombolas, e também um ataque à reforma agrária, já que o desmatamento segue o rastro da expansão da fronteira “agrícola”.
Existe uma necessidade permanente de expansão de áreas para o agronegócio. Como o plantio de monocultura exaure a terra em cerca 10 anos, na busca pelo lucro máximo, é mais barato expandir a fronteira e incorporar novas terras ao invés de revitalizar e tornar agricultável o solo empobrecido por uma plantação que da terra tudo tira, e nada repõe de volta.
Embora a força do agronegócio seja poderosa, a reforma agrária é uma utopia necessária. Ela é um elo entre o campo e a cidade para construir a sociedade do século XXI. Não é apenas mais um ingrediente de desenvolvimento da economia do capital, mas um elemento estruturante do projeto civilizatório de sentido humanitário. Esse projeto rompe com o modo de produção capitalista que se tornou o elefante branco na sala, visto que a expansão sem limites das formas de extração de lucro e de riqueza da natureza pode levar o planeta à exaustão. A Covid-19 e tantas outras doenças que apareceram nos últimos anos e, com certeza continuarão aparecendo, é fruto de um processo desenfreado de saqueio da natureza e da riqueza socialmente produzida.
Como pode-se perceber, a reforma agrária não é um elemento do passado, e sim do presente. E a partir dessa compreensão ela se torna um elemento fundamental para a emancipação da sociedade brasileira.
Texto extraído da fala de Márcio Santos - Geógrafo formado pelo PRONERA e diretor estadual do MST-SP -, no Diálogo entre campo, cidade e floresta: desafio da produção e distribuição de alimentos saudáveis no contexto da pandemia, que pode ser acessado aqui. A conversa foi realizada durante a Jornada Universitária pela Reforma Agrária (JURA) de 2020, organizada em uma parceria entre a Unicamp e o Núcleo PCJ do Fórum Popular da Natureza.