A pandemia mundial causada pelo Coronavírus escancarou a desigualdade social, pois há uma quantidade enorme de pessoas que não têm condições de ficar em casa porque precisam trabalhar para sobreviver. Assim, mesmo conscientes da necessidade de ficar em casa, elas não podem. Acabamos, com isso, por tratar como individuais questões que são coletivas. Não poder estar em casa fazendo isolamento é um questão social, pois vivemos em uma sociedade extremamente desigual e que não é capaz de pactuar acordos que mantenham a produção por demanda, ao invés de uma produção para o mercado - sob a égide de que “a economia não pode parar” - e que coloca em risco a vida pessoas.
Essa repactuação começa por uma pergunta: Qual é a relação entre reforma agrária e democracia? Podemos dizer, que não há democracia sem justiça social, sem possibilidade de acesso aos bens comuns e ao bem viver para os seres humanos e não humanos. Para que haja o bem viver para todos é fundamental que nós dialoguemos sobre quais são as necessidades materiais que pautam o nosso existir.
Nessa perspectiva, observamos que a condição básica de manutenção da vida de muitos trabalhadores e trabalhadoras passa pelo acesso à alimentação sem qualidade, porque serve apenas para manter essas pessoas como mão de obra barata descartável por qualquer pandemia. É um exército de mão de obra reserva acessível ao capital. Por que essas vidas são descartáveis? Por que que se reivindica que as pessoas devem continuar trabalhando? Por que não se visita as questões essenciais da desigualdade, que levam as pessoas a arriscarem a sua própria vida para conseguir o mínimo de ganho necessário para garantir a sua sobrevivência?
Para responder a essas perguntas, precisamos puxar o fio da meada.
- Isso acontece por que falta moradia?
No Brasil, existem mais de 6 milhões de moradias vazias, que estão para alugar, vender ou apenas desocupadas. Por outro lado, nós temos em torno de 6,9 milhões de pessoas sem casa. Então conclui-se que o problema não é a falta de moradia, mas a falta de acesso.
- Do mesmo modo, podemos perguntar: falta terra?
Uma pesquisa que estudou a área urbana da cidade de Piracicaba, no interior de SP, concluiu que há 43.351 lotes urbanos vazios, que poderiam abrigar aproximadamente 140 mil pessoas. Para que servem esses terrenos vazios? Essa pergunta se soma a outra constatação: o Brasil possui 850 milhões de hectares e é um dos países com mais alto índice de concentração fundiária do mundo. Dados do Censo Agropecuário indicam que 1% dos proprietários de terra detém 47,5% do território brasileiro. Além disso, o Censo Agropecuário mostrou que, do total das terras agrícolas do país, 48,1%, ou 158,8 milhões de hectares, eram utilizados para a pecuária. Será que é possível aumentar a produtividade da pecuária, se continuarmos a produzir essa quantidade absurda de carne para alimentar os carnívoros do mundo inteiro? Precisamos repensar nos nossos hábitos carnívoros e o consumo deliberado de carne e, ao mesmo tempo, é possível e liberar grande parte desses pastos sub-utilizados para a reforma agrária.
- Na mesma linha de raciocínio, podemos repensar o trabalho. Será que precisamos de tantas pessoas trabalhando tantas horas por dia? Ou seria mais correto que todo mundo tivesse trabalho e pudesse trabalhar menos horas? Que todo mundo tivesse uma melhor remuneração por horas trabalhadas?
O Papa Francisco conclamou que todas as pessoas devem ter acesso à terra, a um teto e ao trabalho. E esses são elementos fundamentais para avançarmos na direção de uma democracia participativa no Brasil. Quando pensamos na relação entre democracia e reforma agrária, podemos perceber que, sem uma democracia que permita o acesso ao bem viver a todos, não é possível termos melhoras nas condições de vida, não é possível sequer termos uma democracia plena.
A reforma agrária é um símbolo de luta pela re-democratização ao acesso à terra, mas é preciso também lutar pela reforma urbana que deve ser pensada em termos de mobilidade urbana e de acesso aos bens materiais. Esses projetos são indissociáveis rumo a uma sociedade transformada, equitativa e de fato sustentável.
Surge, então, uma outra questão: o que nós precisamos?
Ailton Krenak, liderança indígena, considera que precisamos olhar com atenção para o “Kit civilização”, que reúne o itens que parecem essenciais a todos nós, como geladeira, fogão, celular, notebook, carro. Será que é preciso trocar continuamente esses bens por um novo celular, uma nova TV, um carro do ano? Ou nós podemos produzir bens mais duráveis?
Não é novidade para ninguém que a obsolescência programada, que diminui a vida útil dos bens de consumo, faz parte da lógica das indústrias e do capital. Entretanto, também existe a obsolescência programada em termos de desejo. Há um investimento massivo em publicidade e propaganda e em diversos estímulos para que as pessoas desejem ter coisas novas. Dessa maneira, questionar a obsolescência programada exige questionar as necessidades materiais simbólicas, como também exige um diálogo com todos os humanos sobre o que é felicidade. E que ela não se encerra no consumo de um item novo.
É preciso fazer uma caminhada na direção de recuperarmos valores de felicidade ligados às relações sociais coletivas e ao contato com a natureza.
Para avançar na transformação social é preciso fazer uma disputa de paradigma cultural. Isto é, dialogar com a sociedade no sentido de promover o questionamento sobre o atual modo de produção e consumo, sobre as necessidades materiais simbólicas e sobre como é possível criar outro modo de vida satisfatório.
Um modo de vida que tenha por condição básica a tríade fundamental: terra, teto e trabalho. E também uma segunda tríade: o acesso à saúde, à educação e à natureza, que são inquestionáveis, universais e representam o bem comum, por isso, não podem ser mercantilizados.
Há ainda uma terceira tríade que também precisa entrar nesse diálogo. Essa tríade anuncia o direito de acesso à comunicação na perspectiva educadora, com a qual nós possamos nos educar e dialogar com outras pessoas. O direito à participação popular na tomada de decisão e na aprovação de orçamentos, na construção de planos diretores, e na elaboração de documentos que representem a pactuação de cada grupo social. O terceiro elemento dessa tríade é o acesso à espiritualidade laica, que traz a possibilidade de diálogo de todos e todas sobre aquilo que é mais profundo para si, os valores mais essenciais para além do enriquecer e da acumulação de bens materiais. Essa espiritualidade laica deve ser compartilhada por ateus, agnósticos, cristãos e adeptos de todas as religiões.
Essas 3 tríades representam elementos essenciais para avançarmos rumo à uma sociedade justa e plena para todas e todos.
Texto extraído da fala de Marcos Sorrentino - Professor da Esaql/USP -, no Diálogo entre campo, cidade e floresta: desafio da produção e distribuição de alimentos saudáveis no contexto da pandemia, que pode ser acessado aqui. A conversa foi realizada durante a Jornada Universitária pela Reforma Agrária (JURA) de 2020, organizada em uma parceria entre a Unicamp e o Núcleo PCJ do Fórum Popular da Natureza.