Por Talita Gantus
A atual crise sistêmica que estamos vivendo é uma consequência direta de um modelo civilizatório insustentável do ponto de vista ecológico. A pandemia de Covid-19 estabelece relações causais com o avanço do capital sob a Natureza. Mas nem todas as pessoas são afetadas da mesma maneira, e nem todas atravessam esse cenário dispondo das mesmas ferramentas. Logo, a magnitude do desastre vivenciado se difere entre grupos sociais. O grau dos riscos aos quais as pessoas estão expostas - seja no que tange às doenças propagadas por patógenos, seja no que diz respeito aos desastres diretamente relacionados com as mudanças climáticas - é diretamente proporcional à vulnerabilidade (ambiental, econômica, psíquica, social, etc.). Não obstante, ambos os cenários de risco têm suas raízes na relação contraditória capital-Natureza.
Nesse sentido, a crise socioecológica que se apresenta hoje no Brasil não se deve a falhas setoriais, pontuais e ocasionais no sistema dominante, como um presidente genocida que [apenas] aparenta ser um desvio no percurso democrático, ou um ministro do meio ambiente que afirma sem constrangimento que assumiu o cargo para “passar a boiada”. Precisamos apontar, portanto, que apenas uma mudança global nas estruturas econômicas, sociais e culturais pode encaminhar uma solução para a atual crise sistêmica, social, civilizacional, cultural e ecológica. Uma crise que se repete periodicamente, estabelecendo ciclos. Apesar disso, precisamos pensar em saídas para essas crises, pensar em alternativas sistêmicas.
Faz-se urgente recuperarmos nossa história mais primordial, de uma perspectiva mais ampla: nossa história ecologicamente interligada aos outros seres e elementos enquanto um planeta cheio de vida. A história da nossa casa: Eco, ou oikos, como no grego. Como se originou toda essa biodiversidade que se apresenta a nós e que temos exaurido em um curto período de tempo? Quais narrativas da nossa origem enquanto sapiens e de conformação da civilização transitaram e ainda persistem em nossos imaginários? Como diz o saber ancestral de muitos povos ameríndios: é preciso saber de onde viemos, para sabermos quem somos e, assim, para onde vamos.
Precisamos buscar a ancestralidade do nosso presente para compreendermos o percurso que nos trouxe até aqui, nesse cenário de desastre que se apresenta. O presente é o fio invisível que conecta o passado ao futuro, e neste reside a utopia imaginada que nos move pela força do desejo. É preciso projetar utopias múltiplas, mas que apontem para a mesma direção, para sairmos dessa apatia compartilhada que nos estagna diante do caos. A questão que se coloca é que não há receita pronta para o futuro. A práxis revolucionária se constrói na luta e na vida cotidianas, nesse percurso dialético reflexão-ação. A incerteza de como serão esses novos mundos possíveis que queremos (e precisamos) construir pode se apresentar junto à angústia do novo. Caso ela apareça, tente abraçá-la. A angústia aponta para algo que se esconde em nosso inconsciente.
Proponho aqui um outro exercício: apostemos no desconhecido. Para tanto, é preciso fazermos as pazes com o nosso passado, compreendermos nossos traumas coletivos e elaborarmos nossos lutos. Os lutos coloniais, da ditadura, frutos do racismo cotidiano, de todos os mortos pela Covid-19. Lutos de perdas reais e simbólicas, de nossos ideais revolucionários. Freud, em Luto e melancolia, ensina que o luto é um processo que cumpre a importante função de elaboração de uma perda. Essa perda pode produzir uma certa superação. Podemos transformar o modo de presença de objetos que se perderam. A melancolia, em contrapartida, é um amor por objetos perdidos marcado por uma estrutura de fixação. Na melancolia não há elaboração, e o sujeito se torna impossibilitado de agir. Vladimir Safatle sugere que vivemos hoje o que ele nomeia de melancolia do poder, representada pela perda de um ideal, uma crença em um mundo melhor.
Inesgotáveis são os argumentos críticos ao capitalismo como modo de produção sustentável. Várias são as teses que corroboram o que Marx disse no século XIX, que a dicotomia humano-Natureza criada pelo capitalismo leva à ruptura metabólica. A visão utilitarista que é central à produção de mercadorias nesse sistema trata a Natureza como produto do desenvolvimento humano sem levar em conta os limites naturais. Essa visão instrumentalista está arraigada no antropocentrismo que é produto de uma construção colonial. Ainda assim, rejeitamos e temos medo das alternativas fora do horizonte capitalista.
Existe uma peculiaridade nesse modelo de coesão social que tem o medo como afeto central: toda mudança é pior. Como disse Kierkegaard, “o medo é a expectativa de que o mal ocorra.” Essa forma de poder baseada nesse circuito de afetos produz melancolia. Uma sombra que recai sobre o Eu, um modelo marcado pela paralisia que bloqueia qualquer imaginação política. Desencantamento. É nessa paralisia que o processo de poder (de uns sobre outros) se garante. Precisamos elaborar nossos lutos e superarmos nossos traumas coletivos para resgatarmos nossa capacidade de imaginar, de sonhar com outros mundos possíveis.
O sonho é o nosso farol para o futuro. Toda noite ele faz conjecturas do que pode ser o amanhã. O sonho evoluiu nos mamíferos há pelo menos 200 milhões de anos, e há 3 milhões de anos ele foi - nas palavras de Sidarta Ribeiro - “um oráculo probabilístico para nossa espécie tentar sobreviver ao amanhã”. E ele se tornou tão importante na cultura humana que os primeiros relatos históricos apontam a presença de sonhos premonitórios na Suméria, na Babilônia, no Egito, entre os aborígenes e em várias etnias ameríndias. O compartilhamento desses sonhos em representações míticas são formas de manter viva uma memória vivida em outro tempo, em outro espaço.
No tempo do mito, como nos conta Ailton Krenak, não experimentávamos a angústia da certeza, a angústia em relação ao amanhã. Não tínhamos ideias, recursos, meios para medir o tempo. O amanhã diz respeito à nossa ideia de tempo prospectivo, como uma flecha sempre em direção a alguma coisa que aprendemos a pensar como o futuro, e que hoje o capitalismo nomeia como progresso. No mito, o tempo é uma espiral: conecta passado, presente e futuro - como a memória. Podemos dizer que, na modernidade, contamos o tempo mobilizados mais pela angústia do que pela incerteza. “Vivemos na arrogância e pretensão de que amanhã estaremos aqui, investida na incerteza viva que somos”. Mas não podemos abusar da ideia do amanhã como viemos fazendo até então. E a pandemia de Covid-19 veio para escancarar aos desavisados que a vida é um sopro.
No horizonte capitalista, a falta de certeza dos rentistas e dos políticos sobre o amanhã volatiza os números no mercado financeiro, que controla as sociedades modernas, globalizadas e interligadas, a partir de uma narrativa ficcional, baseada em dinheiro esvaziado e não lastreado. Precisamos visitar o lugar anterior ao da angústia da nossa (in)certeza sobre o amanhã. Abandonar o lugar em que nos colocaram e onde nunca coubemos de fato: o do subdesenvolvimento que busca sempre esse ideal colonial de progresso projetado num futuro que nunca chega.
As memórias do passado aplicadas ao futuro geraram aos sapiens um ganho de adaptação positivo. Somos fruto desse processo de milhões de anos que nos permite trafegar pelo tempo e pelo espaço e imaginar livremente. A capacidade de simular futuros possíveis, que chamamos de imaginação, na realidade foi uma invasão do sonho na vigília, e que trouxe uma grande vantagem evolutiva à nossa espécie. Ao evoluirmos na linguagem, essas experiências oníricas puderam, então, ser compartilhadas com nossos semelhantes, o que nos permitiu a narrativização das experiências. Foram essas experiências que nos tiraram do mundo competitivo da vigília de presa-predador e que nos permitiram entrar no mundo da cultura humana e da ética do cuidado. Em todas as civilizações antigas, os sonhos eram coletivizados e tidos como oráculos. Na psicanálise, n’A interpretação dos sonhos, obra fundante do método psicanalítico, o mito figura como fonte de inspiração e reflexão para Freud pavimentar suas teorias acerca do funcionamento psíquico. Freud salienta que o psiquismo não se restringe ao indivíduo, e que a vida humana é tecida entre o coletivo e o individual. O inconsciente, ainda que atemporal, traz as marcas da memória da espécie e da história, que recaem sobre o destino individual.
Se pudermos usar como tese a cultura da arte de sonhar, que tem como antítese a ciência e o capitalismo, talvez consigamos gerar uma síntese guiada pela sabedoria ancestral, mítica e onírica que nos trouxe até aqui enquanto espécies hominídeas. Sonhar com outros mundos possíveis para, quem sabe assim, o mito de uma Terra Planta possa alcançar mais adeptos do que a conspiração da Terra Plana. Reflorestar pensamentos para combater a monocultura da alma!
Imagem: Mídia Índia