Texto por: Bruno Fernandes, membro do Núcleo PCJ e da Oca (Esalq/USP)
Segundo o mais recente relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) a emergência socioambiental e climática superou a etapa de bater a nossa porta, hoje ela espera sentada no sofá da sala e tem feito estragos constantes em todo o planeta, em outras palavras, a natureza tem reagido às violências sofridas. Do mesmo modo o “traje” atual utilizado pelo sistema capitalista deixa evidente que a lógica de acúmulo de capital financeiro não irá parar, custe o que custar ou quantas vidas demandar, e a pandemia da COVID-19 tem nos mostrado isso. Por um lado, temos o apelo pelo cuidado e a proteção à vida humana, de outro temos comerciantes em plena falência financeira e uma economia em cacos, e de um terceiro lado ainda temos bancos e demais setores rentistas lucrando em meio ao caos sanitário. Parece que essa equação não fecha mesmo, não é? Para quem o estado tem atuado no final das contas? E o negacionismo científico? E a política eugenista praticada pelo governo federal brasileiro? Quem tem sido realmente afetado nesse contexto?
Tudo está conectado, e o grande trunfo do sistema capitalista é propagar que não existem possibilidades ou alternativas para além desta lógica econômica de produção e consumo, que coloniza a terra e demais seres que nela habitam em prol de um extrativismo rasteiro que atenda principalmente o 1% das elites econômicas, que atualmente brincam nos mercados de ações, mineram bitcoins, ou estão ainda financiando passeios pela estratosfera terrestre, evidentemente acobertados por um grande patrimônio hereditário, poucas vezes tributados pelo estado. O setor rentista, os verdadeiros ricos do planeta já compreenderam a emergência atual, suas soluções não surpreendem ninguém: construir bunkers “gourmet” para os seus, ou habitar outro planeta se for necessário. E nós, os mortais, o que faremos?
Falar sobre a crise climática é compreender a ocorrência cada vez mais frequente de eventos extremos, que se revelam em períodos de secas e chuvas extremas, grandes variações de temperatura, e ocorrência de pandemias. Estes eventos são comprovados pela ciência como resultantes do avanço predatório sobre os ecossistemas e a biodiversidade. Ao mesmo tempo, é importante pontuar que os efeitos causados por estes eventos não se distribuem de forma igualitária por todas as populações humanas, existem diferenças de classes sociais e disparidades entre países do norte e sul global, que se apresentam principalmente no aumento das imigrações e refugiados climáticos, e nos impactos notórios que a pandemia da COVID-19 tem ocasionado para populações em maior situação de vulnerabilidade social, o que muitos tem a categorizado inclusive como uma sindemia.
Na América Latina temos o exemplo clássico das políticas de commodities, que tornaram o território nas últimas décadas um celeiro de fornecimento de monoculturas do agronegócio e atividades de mineração para os países industrializados, se industrializarem cada vez mais… Existem aqueles que dizem que o Brasil se desindustrializou, e isso é um fato consumado que nos coloca em um cenário econômico bastante complicado, dependente do capital externo e da exploração da terra e da classe trabalhadora. Mas será que o melhor caminho seria seguirmos o modelo de desenvolvimento adotado por países como EUA e demais potências econômicas? Ao mesmo tempo, como resolvemos nosso enorme abismo social e problemas extremos como a fome, a pobreza extrema, o acesso a terra e ao teto digno? Será apenas construir um desenvolvimento sustentável ou novas técnicas produtivas para superarmos uma problemática complexa como esta? Ou precisamos de um processo de base revolucionária que construa outras estruturas e promova transformações culturais profundas?
Primeiramente é preciso se posicionar, não existe futuro comum no atual sistema capitalista de desenvolvimento, e tenho dúvidas se existe futuro em qualquer proposta sobre desenvolvimento que surja neste contexto, ou seja, não existe justiça social em cenário de terra arrasada. Já me disseram que desenvolver é sempre o oposto de se envolver, um flerte real com propostas individualistas, extrativistas e meritocráticas, ou seja, pensar o desenvolvimento sustentável para o sistema capitalista é dar alguns retoques tecnológicos e inovadores em um sistema produtivo adoentado em sua gênese. E como lidar com isso? Talvez precisemos começar observando e aprendendo com outras formas de vida humana e não humana, da biodiversidade e de povos que habitaram essa terra muitos milênios antes de colonizadores europeus marcarem presença na violência e depois ganharem estátuas nas ruas das grandes cidades. Quantas formas de vida, para além dos cafonas debates geracionais nós conhecemos no Brasil? E na América Latina?
A noção sobre o comum, radicalmente oposta a qualquer ideia homogeneizante ou simplificadora da realidade, tem um horizonte possível na busca de resistência e transformações culturais profundas, necessárias ao contexto da hecatombe socioambiental que vivenciamos. Romper com as opressões e violências do sistema capitalista por meio da organização popular é o esperançar de Paulo Freire, e buscar estes arranjos na perspectiva da pluralidade de existências e distintas interpretações sobre a realidade, comprometidas com a coisa pública, coletiva e a participação, são estratégias para que caminhos educadores se construam no diálogo e debate da real representatividade, sem ser a verdade de alguns poucos em espaços de raros questionamentos sobre os caminhos planejados. Em outras palavras, é buscar o real sentido do poder popular. Habitando os tempos do estado capitalista, a busca pelo comum emerge desta resistência popular, especialmente nas ruas e demais espaços públicos, bem como na auto-organização dos grupos sociais. O que temos visto sobre isso nos últimos anos?
No mesmo sentido o bem viver tem sido muito mencionado nos últimos anos, mas é um processo de construção milenar de povos originários e comunidades autóctones, cosmologias diversas que construíram outras perspectivas de habitar e conviver com a vida e a natureza. A nós, seres da sociedade ocidental eurocentrada latino-americana, em busca da superação dos caminhos impostos pelo progresso (que hoje fracassam em suas rasas promessas de prosperidade e riqueza material), ficam as possibilidades de romper os muros, conhecer o que existe além do centro e da monocultura da mente tão criticada por Vandana Shiva, e principalmente reconhecer os direitos humanos elementares à todas essas expressões de vida, uma vez que historicamente estão resistindo a todo tipo de violência praticada pelo sistema.
O mesmo deve ser reconhecido aos demais seres vivos, animais não-humanos, qual a relação que devemos construir, ou reconstruir com a natureza e a biodiversidade, o que existe além do ego antropocêntrico ensinado pelo sistema capitalista moderno? Mais do que uma instituição, o bem viver pode ser um movimento educador, no qual nos permitimos à aprendizagem socioambiental com as demais formas de vida, que habitam ou habitaram os territórios que vivemos.
É neste contexto que a noção do comum faz sentido, para se opor principalmente a perspectiva de algo homogêneo e hegemônico, das maiorias ditando o caminho para as ditas “minorias”, e construir assim a organização popular nesta diversidade de cosmovisões, fortalecendo a solidariedade e a cooperação entre os os grupos sociais, o respeito e o pertencimento aos ecossistemas que integramos, e buscando assim a construção política da participação e do pertencimento aos territórios, ou seja, outra perspectiva sobre o estado e sua função social, e a vida como um todo.
Mas afinal, o que isso tem a ver com a superação da emergência climática e socioambiental? Se estamos diante de uma problemática complexa, suas soluções exigem algo além das soluções pontuais. Sabemos a origem da questão, do avanço predatório sobre os ecossistemas e sua relação com o sistema produtivo capitalista, não seria inocência de nossa parte acreditar que meros retoques neste sistema seriam suficientes? Ah, mas temos a tecnologia a nosso favor! De fato, temos, mas retribuo a afirmação com a seguinte pergunta: a quem a tecnologia atende afinal? A sociedade ou ao sistema de produção capitalista? Existem tecnologias públicas, acessíveis a todas as pessoas, que resolvam os problemas das emissões veiculares ou de saneamento em um aglomerado urbano com mais de 10 milhões de pessoas? Os tempos atuais nos mostram que não, é evidente que a tecnologia e as técnicas tem papel importante na prevenção e mitigação de impactos socioambientais, mas não podemos encerrar o debate nesta perspectiva apenas, ir até onde o status quo deseja, é preciso ir além, pensar a questão na dimensão sistêmica com a prática constante de uma nova ética socioambiental.
A questão está nas mudanças culturais, outra relação com a terra, ir além da nossa perspectiva de mundo atual, aprender com outras cosmovisões. Somar a luta dos movimentos sociais, povos originários e coletivos populares. Praticar a solidariedade como princípio fundante, criar espaços de diálogos e aprendizagem, fazer análises da conjuntura atual, criar os mecanismos de resistência e articulação e principalmente, traçar e planejar os futuros comuns, que aprendam principalmente com os caminhos do bem viver. Experiências neste contexto existem aos montes em toda a américa latina, por outro lado o sentimento muitas vezes é de estar só diante da hecatombe. Como criar sinergia, gerar potência em torno do comum? Como nos inserimos nesse processo? Para isso finalizo estas ideias nos convidando a esperançar como Paulo Freire, resistindo sempre, como fazem muitos povos do Brasil, muito antes da invenção do progresso e da modernidade.
Inspirações na escrita e recomendações para aprofundar as questões:
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2016.
ACOSTA, Alberto; BRAND, Ulrich. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo: Elefante, 2018.
BOOKCHIN, Murray. Ecologia Social e outros ensaios. 2ª Ed. Rio de Janeiro, RJ. Rizoma, 2015. 183p.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Echalar, Mariana. São Paulo: Editora Boitempo, 2017. 647
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração: isto não é um manifesto. Tradução: Carlos Szlak. São Paulo: n-1 Edições, 2014.
LEFF, Enrique. Saber Ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 494 p.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias del Sur. Mexico : Siglo XXI, 2010.
SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências./ Maristella Svampa; tradução de Lígia Azevedo. — São Paulo: Elefante. 2019 192 p.