Texto por: Henrique Magalhães
Não nos deixemos, porém, lisonjear-nos por causa das nossas vitórias humanas sobre a natureza. Para cada vitória, a natureza se vinga de nós. Cada vitória, é verdade, em primeiro lugar, traz os resultados que esperávamos, mas no segundo e no terceiro lugares tem efeitos imprevistos bastante diferentes, que muitas vezes apenas anulam os primeiros” (Friedrich Engels. A Dialética da Natureza, 1925).
Desde que nós, Homo sapiens, habitamos o Planeta Terra, há 200 mil anos (“alguns segundos” de existência, se comparado aos 4,5 bilhões de anos do nosso planeta), manejamos e interferimos na dinâmica da natureza visando a nossa sobrevivência. No entanto, desde que começamos a formar os primeiros grandes núcleos populacionais, oriundos da Revolução Agrícola, quando deixamos de ser majoritariamente caçadores-coletores para nos tornar agricultores, a intensidade dessa interferência tem aumentado gradativamente: domesticamos plantas e animais, selecionando artificialmente os genes que melhor atendiam às nossas necessidades; e alteramos paisagens florestais para a construção de espaços comunitários (Mazoyer e Roudart, 2010). Posteriormente, com o advento da Revolução Industrial (evento que marcou a consolidação da industrialização em larga escala e, consequentemente, de novas relações de trabalho e da expansão imperialista) e do período pós-Segunda Guerra Mundial (principalmente a partir de 1950, quando o processo de industrialização em massa se expandiu ainda mais, especialmente nos países desenvolvidos, levando a uma expansão urbana cada vez mais crescente), o grau dos impactos das ações antrópicas ganhou proporções ainda maiores (Margulis, 2020).
Partindo das premissas que acabamos de relatar, na década de 1980, o biólogo estadunidense Eugene Stoermer cunhou o termo Antropoceno (posteriormente popularizado, em 2000, pelo holandês Paul Crutzen, vencedor do Prêmio Nobel de Química em 1995), como referência ao alto grau de impacto das atividades humanas pós-industriais sobre a Terra, cuja relevância culminou com o início a uma nova era geológica (Crutzen e Stoermer, 2000; Crutzen, 2002). À luz de evidências científicas incontestáveis acerca da magnitude, variedade e longevidade das mudanças induzidas pela ação humana, incluindo a transformação da superfície da terra e a mudança da composição da atmosfera, o termo ganhou (e vem ganhando) rápida popularidade no consenso acadêmico e popular desde então (Lewis e Maslin, 2015). Dentre as inúmeras sequelas das ações humanas sobre o planeta, potencializadas e diversificadas exponencialmente pelo capitalismo (na minha percepção, o grande vilão dessa história), certamente a maior delas é o aquecimento global, que culmina com a crise climática, o que vem sendo relatado por diversos estudos e relatórios, como as contribuições do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, do inglês Intergovernmental Panel on Climate Change).
No último dia 9 de agosto de 2021, foi publicada a contribuição do Grupo de Trabalho I para o Sexto Relatório de Avaliação (AR6 WGI) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) (IPCC, 2021). O documento trouxe um panorama atualizado acerca do estado de conhecimento acerca da ciência climática a partir de uma análise detalhada das bases físicas das mudanças climáticas passadas e presentes, bem como das projeções futuras. O AR6 WGI é ainda mais enfático, em relação aos relatórios anteriores do IPCC, quanto à influência inequívoca da ação humana no aquecimento do sistema climático, e que mudanças climáticas cada vez mais rápidas e disseminadas têm ocorrido pelo mundo (Chen et al., 2021).
Do aquecimento de 1,09oC observado atualmente (2011-2020) em comparação com o período pré-industrial (1850-1900), estima-se que 1,07oC deriva de ações humanas (como a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento), ou seja, praticamente a sua totalidade. Consequentemente, atingimos as maiores concentrações de gases de efeito estufa (GEE), como CO2, CH4 e N2O, em 800 mil anos: se considerarmos somente as concentrações de CO2, elas são as maiores em pelo menos 2 milhões de anos (Chen et al., 2021). Dessa forma, as taxas de aquecimento global têm se intensificado cada vez mais (a maior em pelo menos 2 mil anos), fazendo com que a maior parte do planeta já esteja experimentando progressivamente um aumento na frequência, intensidade e duração dos extremos de calor (Seneviratne et al., 2021).
Os cenários projetados apontam para um aumento de 1,5°C na temperatura média global até a década de 2030, o que faria com que os dias mais quentes do verão em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, apresentassem temperaturas até 3oC acima em relação às máximas atuais. Em regiões áridas e semiáridas, por exemplo, naturalmente mais sensíveis e expostas à eventos de secas extremas, isso causaria um aumento expressivo do número de dias com temperaturas acima dos 40°C (Doblas-Reyes et al., 2021; Lee et al., 2021). Essa sensibilidade é explicada por fatores ambientais, como baixos índices de pluviosidade associados às altas taxas de evapotranspiração anuais, o que se reflete nos processos de degradação do solo e desertificação, intensificados pela ação humana. Estes, por sua vez, estão associados a características socioeconômicas e diferenças regionais como altos índices de analfabetismo, baixos níveis de renda, migração para centros urbanos e exclusão social, o que torna essas regiões ainda mais vulneráveis à insegurança alimentar, hídrica e energética (Marengo et al., 2018; Vieira et al., 2021), pondo em risco os ecossistemas, os recursos naturais ofertados e o modo de vida das populações humanas locais, que têm na agricultura e pecuária de subsistência suas principais fontes de subsistência.
Os dados que acabamos de relatar (e olha que foram apenas alguns) apontam que a Terra vivencia inequivocamente uma crise climática sem precedentes na sua história, uma vez que as implicações ecológicas, sanitárias, socioeconômicas e políticas são (e tendem a se tornar) cada vez mais intensas, rápidas e catastróficas, especialmente sobre as regiões mais vulneráveis do ponto de vista socioambiental. Considerando que as projeções de cenários futuros apontam que esses extremos de variabilidade climática tendem a se intensificar ainda mais nessas regiões no decorrer do século XXI (Marengo e Bernasconi, 2015; Lee et al., 2021), tendo como consequência o racismo ambiental.
O termo “racismo ambiental” tem ganhado grande força nos debates acadêmicos e populares, e faz referência às formas desiguais pelas quais as etnias historicamente invisibilizadas e vulnerabilizadas pelo poder público são expostas às externalidades negativas e a fenômenos ambientais nocivos como consequência de sua exclusão dos lugares de tomada de decisão (Pacheco, 2007). O conceito reflete também as relações ecológicas desfavorecidas entre o norte e o sul global, como consequência do colonialismo, neoliberalismo e globalização. Como exemplo clássico dessas relações de desigualdade, temos o advento de grandes empreendimentos desenvolvimentistas, como garimpos e fazendas voltadas ao agronegócio (construídas sob áreas de queimadas e desmatamento florestal), processo que expulsa populações originárias de seus territórios, destrói suas culturas e degrada o ambiente (McMichael, 2012). Em suma, os mais pobres, historicamente, tendem a pagar pelos erros que os mais ricos cometem. Trazendo a discussão para o panorama das mudanças climáticas globais, países insulares e subdesenvolvidos, por exemplo, cuja responsabilidade pela emissão de GEE na atmosfera é praticamente nula em comparação às nações desenvolvidas, como Papua Nova Guiné, correm o risco de “desaparecer do mapa” devido ao paulatino aumento dos níveis das águas oceânicas.
Diante do cenário generalizado de crise climática (e, consequentemente, humanitária) apresentado pelo AR6 WGI, em consonância com tantas outras evidências anteriormente apontadas, não devemos ignorar, tampouco relativizar, os impactos das mudanças climáticas globais. Temos que admitir que o grande responsável por esse colapso é o capitalismo, cuja lógica destrutiva e de acúmulo ilimitado de lucro é completamente incompatível com a dinâmica da natureza. Nós, enquanto reprodutores (embora críticos) desse sistema, somos corresponsáveis por isso: não estamos falando de um passado remoto, tampouco de um futuro distante, mas do presente, de uma realidade que está acontecendo diante dos nossos olhos. Dessa forma, devemos refletir política e socialmente acerca dos dados explanados pelo relatório, de forma ampla, horizontal e organizada, num grande esforço mútuo entre as instituições democráticas e a sociedade civil.
Nessa busca por uma narrativa comum, que contemple à todas e todos, não cabe elitismo científico ou político-institucional, tampouco conciliação entre exploradores e explorados (mentores/gerenciadores, e uma imensa maioria historicamente vitimada pelo sistema capitalista, respectivamente). Assim, devemos nos organizar e mobilizar para tentar evitar o pior. Nossos hábitos de consumo e do dia a dia devem ser reavaliados e ressignificados. Lembremos sempre que “não existe planeta B”, que temos pouco tempo e que amanhã pode ser muito tarde. Lutemos, pois, pela sobrevivência do nosso planeta, antes que ela seja roubada de nós.
Henrique Magalhães é biólogo, doutor em Etnobiologia e Conservação da Natureza, consultor e educador ambiental, militante ecossocialista da Insurgência/PSOL e do Fórum Popular da Natureza.
Referências
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Crutzen, P. J. Geology of mankind. Nature , v. 415, p. 23, 2002. Disponível em: https://web.archive.org/web/20120305010405/http://academics.eckerd.edu/instructor/carlsopr/Papers/Anthropocene.pdf.
Crutzen, P. J.; Stoermer, E. F. The “Anthropocene”. Global Change Newsletter, v. 41, p. 17–18, 2000. Disponível em: https://inters.org/files/crutzenstoermer2000.pdf.
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Lee, J. Y. et al. Future Global Climate: Scenario-Based Projections and Near-Term Information. In: Masson-Delmotte, V. et al. (Eds.). Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Intergovernmental Panel on Climate Change, Cambridge University Press, 2021. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/downloads/report/IPCC_AR6_WGI_Chapter_04.pdf.
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