As búfalas de brotas: entre o especismo, o capitalismo e a escolha de uma libertação total

Texto por: Kauan Willian (professor da rede municipal de São Paulo, militante sindical e da Antar - Poder Popular Antiespecista- SP) e Renato Libardi (professor efetivo do Instituto Federal de Alagoas (IFAL) e militante da Antar - Poder Popular Antiespecista - Pernambuco)

No dia 6 de novembro desse ano fomos noticiados, após uma denúncia, que a Polícia Ambiental da cidade de Brotas (SP) encontrou na fazenda Água Sumida 22 carcaças de búfalas enterradas. Com o avanço das investigações encontraram mais de 1.000 búfalas espalhadas na fazenda sofrendo maus tratos, desnutridas e com sede. O proprietário da fazenda alegou que devido à pandemia não teve como alimentar os animais, nem vendê-las. Ele foi multado pelo valor de R$ 2,13 milhões e detido no dia 11 de novembro, mas pagou uma fiança de R$ 10 mil e foi liberado.

Essa notícia, apesar do abandono de animais que são usados em “produção” de alimentos e de vestuário serem recorrentes, ganhou um destaque público saindo em diversos canais de televisão, portais de notícias e ganhando notoriedade de celebridades e ativistas. Essa divulgação alavancou a ajuda que as ONGS Araramor, Respeito Animal e Santuário do Vale estão realizando em prol desses seres (que pedem ajuda no PIX: 14.732.153/0001-38).

Não obstante, a maioria dos canais da grande mídia e de diversos ativistas não tocam na raiz do problema, e nem como resolvê-lo, além do assistencialismo (mesmo que, de fato, seja urgente a ajuda para esses animais no momento). Não ignorando essa última ação, precisamos analisar a origem dessa opressão e as estruturas que fazem essa ação se repetir sistematicamente em diversos níveis e ocasiões diferentes, no que se refere aos maus tratos animais e a destruição da natureza e de ecossistemas.

Todos, ao nosso ver, têm uma ligação bastante clara: a lógica do capital. Nesse sentido, Karl Marx, um dos maiores analistas do capitalismo em sua fundação, já no século XIX, revelava que a condição para esse sistema se manter, no qual transforma tudo em mercadoria, é a lógica de que as fontes de riqueza naturais são infinitas. Como sabemos que não são, isso cria uma contradição em que “produção capitalista somente desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social na mesma medida em que destrói as fontes de toda a riqueza: a terra e os trabalhadores.” A morte de indígenas para plantar gado, o “acidente” nas barragens de Brumadinho, o abandono das búfalas tem um elo, o lucro acima das vidas, animais, humanas ou vegetais. E não é uma questão de ser bom ou mau. Um capitalista, por exemplo, mesmo sabendo que as únicas vias de seu lucro (a força de trabalho e a natureza) serão destruídas por sua lógica, não é possível pará-la, pois isso levaria o fim do capitalismo, e de seu lucro, da sua própria classe. O discurso de capitalismo verde é falso pois capitalismo e o verde não podem existir mesmo se quisessem. Quando você transforma seres ou ecossistemas em mercadoria, a lógica é descartá-las, por isso mesmo o proprietário da fazenda em Brotas descartou as búfalas para plantar soja, pois ele busca seu lucro.

Acreditar que há alguma saída, portanto, dentro desse sistema, fadado a destruição, é ingenuidade, ignorância ou esconde algum interesse desses detentores dos meios de produção e favorecidos pelos lucros - que evidentemente dão as cartas para o controle político da sociedade (o Estado). Portanto só a união dos oprimidos por esse sistema, destruindo tal estrutura e essa forma de poder econômica e política, pode barrar o ciclo desses “acidentes” e “maldades” para sempre.

Mas não nos enganemos, a destruição desse ciclo não depende só de uma consciência de classe, mas de uma consciência ecológica radical. Nesse sentido, há razão para alguns protetores animais e ativistas veganos que mostraram que não há lógica de ter dó das búfalas abandonadas, mas ignorar o fato que mais de 56 bilhões de animais terrestres e mais de 800 bilhões de animais marinhos sejam mortos anualmente pela indústria alimentícia. Desse modo, assim como consideramos insuficiente um protetor animal ou ecologista não considerar o anticapitalismo, achamos problemático um anticapitalismo que não reveja os problemas que existem na dominação da natureza, e dos animais deste caso em particular.

Consideramos, portanto, o especismo (discriminação e violência com base na espécie) não apenas como um “sintoma” ou um “detalhe” dessa lógica antiecológica e burguesa, mas uma categoria essencial e da maior importância para a manutenção do sistema econômico liberal a partir da acumulação ad infinitum do capital cuja lógica e cuja prática pouco diferem do que costumamos chamar de “acumulação primitiva do capital”. Dessa forma, através da exploração animal, a classe dominante perpetua seu poder externalizando os custos da produção para a natureza, para os animais e para as classes oprimidas em uma economia perversa.

O Antiespecismo, a partir do Veganismo Popular e Revolucionário, se mostra como uma alternativa anti-sistêmica e de justiça ecológica, promovendo estratégias de luta, conscientização e boicote contra a mercantilização da vida (animal, natural e humana). Entre as estratégias que militantes antiespecistas vem aderindo há tempos, destaca-se a inserção nos movimentos sociais, nas lutas contra o capitalismo, o patriarcado, o racismo e tantas outras causas, pautando o veganismo como essencialmente coerente contra as explorações capitalistas, mas também a conscientização das camadas populares sobre os horrores que passam os animais cuja lógica exploratória é replicada socialmente, transformando todos em “bestas de carga”. As explorações estão conectadas, e é por isso que o geógrafo anarquista Eliseé Reclus, ainda no século XIX, já afirmava que “Não é uma digressão mencionar os horrores da guerra em conexão com o massacre de gado e os banquetes para carnívoros. A dieta corresponde bem aos modos dos indivíduos.”

Nesse sentido, para além do boicote, ainda importante, já que visa expor essas práticas cruéis e que não aceita a participação dessa roda continuar girando, organizações que visam a união de oprimidos, trabalhadores, com uma consciência ecológica, e auto-organização dos povos junto à sustentabilidade, nos dão o caminho. Internacionalmente as rebeliões e revoluções anticoloniais, ecológicas, socialistas e libertárias como a Revolução dos Cocos, A Revolução Curda e a Revolução Zapatista nos dão esperança. E aqui, movimentos como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), o Bem Viver e a Teia dos Povos, são ao mesmo tempo formas de resistência, combate contra o mundo que vivemos e embriões de um novo mundo.

Queremos as búfalas e todos os seres, animais e humanos, totalmente livres!

ANTAR & UVF. Antiespecistas: o manual do veganismo popular e revolucionário. Editora Terra Sem Amos: Brasil, 2021.

“Bestas de Carga: panfleto vegano-socialista”: Colunas Tortas, 2015.

“Búfalas de brotas: entenda o que está acontecendo na fazenda onde animais foram encontrados em situação de abandono”. In: g1.globo.com. Disponível em: Búfalas de Brotas: entenda a situação dos animais que sofreram maus-tratos em fazenda | São Carlos e Araraquara | G1

MARX, Karl. Das Kapital. Band I. Berlin: Dietz Verlag, 1983.

RECLUS, Eliseé. A Anarquia e os Animais. Atedeu Diego Gimenez, 2010.