A doença e o feitiço da mercadoria


Quadro: "El Covid-19 pelea contra los abuelos”- Santiago Yahuarcani do povo Uitoto do Peru.

Por Allan de Campos Silva

Quando os portugueses primeiro desembarcaram nos territórios que hoje compõem o Brasil, os indígenas, sagazes que são, logo descobriram que o homem branco padecia de um mal irremediável: estavam enfeitiçados pelo ouro, o seu deus pagão ao qual serviam feroz e piamente. Em diversas cosmovisões indígenas, o estranho e terrível desejo infindável pelas mercadorias foi interpretado a partir de um deslocamento de sentido de palavras que já existiam em seus idiomas, palavras essas que já guardam muitos significados diferentes.

A xawara, para os Yanomami, é um ser maléfico, espécie de entidade imaterial que causa doenças. Em geral, xawara é traduzido para português como fumaça da epidemia. A destruição da floresta e o rastro de lavras que vai ficando pelo caminho do garimpo foi desde sempre acompanhado dessa fumaça das doenças, ou ainda, dessas fumaças do metal. Os brancos, sempre arrogantes e obtusos, cegos ao mundo das entidades da floresta, os xapiri, fizeram pouco caso desse conceito. Aos poucos a pesquisa científica abriu os olhos e ouvidos e hoje os surtos de malária são entendidos como um dos indicadores socioambientais centrais relativos à destruição da natureza. Os Yanomami, claro, já sabiam, mas pouco puderam fazer: durante a pandemia, a transmissão comunitária da xawara da covid se consolidou nos circuitos do garimpo e fez suas vítimas antes de tudo entre aqueles mal curados de várias malárias pretéritas.

Os Guarani e os Kaiowá também guardam uma palavra especial para se referir aos feitiços: o mba’etirõ, união de mba’etî - fumaça, vapor - e yrõ - odioso, maléfico, que resultaria no significado aproximado ‘fumaça maléfica’. A covid-19 é assim referida entre os Guarani Kaiowá como um mba’etirõ. Mas o mba’etirõ também é a entidade imaterial, o dono da doença. E, tanto entre os Guarani-Kaiowá quanto entre os Yanomami, cabe aos xamãs buscar a cura a partir da imersão no mundo imaterial dessas doenças. Um mundo cujos pilares são reiteradamente destruídos.

Pois bem, os vírus a gente também não vê. Cegos às dinâmicas microbiológicas do modo capitalista de produção de doenças - como nos ensina Rob Wallace - insistimos na devastação ambiental e na modernização agropecuária que justamente estão na raiz dos novos patógenos que hoje nos assombram. A religião capitalista, como dizia Marx, com um empurrão e um chute, derrubou do altar todas as divindades que povoavam a cosmovisão humana para proclamar os Deuses Dinheiro e Valor como objetivos últimos da humanidade.

Não à toa, o processo colonial inaugurou também o racismo que mobiliza à força o trabalho alheio, subjugado e apresentado como preguiçoso, insolente, selvagem, primitivo, pré-moderno, irracional. E ainda hoje acontece dos capangas do agronegócio botarem fogo nas casas de reza dos Guarani, as Opy, como forma de espalhar o terror material e atacar o mundo invisível dos Guarani.

Por tudo isso é importante reavivar a memória indígena sobre os feitiços do capital e suas doenças. No entanto, a lição mais preciosa que essa história tem a nos contar é a convocação para o fortalecimento das lutas contra a intrusão do garimpo, da soja, do boi e da madeira dos territórios quilombolas e camponesas. Também a luta pelas retomadas dos territórios indígenas e quilombolas. Só assim para que o poder do ouro canibal seja abolido e sua ruína não mais ameace as nossas cabeças, seja de Karaí¹ ou de Guarani.

¹Karaí é o não-indígena para os Guarani e Kaiowá.

REFERÊNCIAS
KOPENAWA, D. & ALBERT, B. A queda do céu: conversações com um xamã Yanomami. São Paulo, Cia das Letras, 2015.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I, Tomo II. Capítulo XXIV. A assim chamada acumulação primitiva. São Paulo, Abril Cultural, 1996.

MURA, Fabio. À procura do “bom-viver”: Território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os Kaiowa. Rio de Janeiro, ABA, 2019.

WALLACE, Rob. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo, Elefante & Igrá Kniga, 2020.

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