Foto: Lana Eslãnia
Texto por: Davi Amorim - MNCR
Como lutadores do povo que somos e parte da camada mais pobre, marginalizada e excluída da população, nada temos a perder e nada menos podemos querer do que modificar radicalmente a estrutura desta sociedade. Para isso é importante compreender como ela funciona, as origens de toda a desigualdade, conhecer nossa história, saber de quem somos descendentes, aprender com o exemplo de luta dos antepassados; colhendo aquelas experiências que ainda podem ser aplicadas, adaptando aos dias de hoje para construção de nossa estratégia e projeto político de poder popular.
Já data de mais de 70 anos as histórias da catação no país, nossos velhinhos que com seu testemunho vivo de sofrimento, injustiças e muito trabalho duro, contribuíram nas ruas e nos lixões do Brasil para a preservação verdadeira do meio ambiente. Muito diferente dos discursos inflamados de alguns ecologistas sem prática, mas com a vida, pernas, braços e mãos retiraram milhares de toneladas de matérias primas recicláveis e as destinaram para a reciclagem, preservando milhares de metros cúbicos de natureza limpa. Isto é terra que deixou de ser poluída, terra de nossos ancestrais índios, que no passado, livres, viviam de “coletar” aquilo que esta mesma natureza que preservamos oferecia em abundância para todos. Hoje conscientes ou instintivamente seguimos reproduzindo o que há de mais antigo na nossa cultura, a coleta. Índios, negros, imigrantes pobres e a mistura de todas as raças, culturas e experiências de lutas fazemos do MNCR o espaço de encontro de todos(as), para construção de nossa utopia.
Carregamos em nossos objetivos a construção de uma “utopia realizável”, ou seja “uma nova forma de estar e viver no mundo em coletividade”, livres de toda opressão e exploração da sociedade capitalista. texto de introdução da Cartilha de Formação Nacional do MNCR em 2005
Locução por Chirlei Camargos de Jesus:
No ano de 2001, quando da fundação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), a palavra utopia circulava entre as conversas das lideranças. Sonhava-se com dias melhores e direitos básicos, mas algumas metas eram vistas por muitos como sonhos muito distantes da realidade naquele momento.
Algo como receber das prefeituras municipais pelo serviço de coleta e destinação adequada dos resíduos sólidos era um desses sonhos distantes, mas que hoje não são apenas realidade em muitas cidades brasileiras como também significa a única forma de estabilizar o serviço de coleta seletiva com planejamento e permanência. Ao longo desses 20 anos de luta muitos outros sonhos se concretizaram e o movimento acumulou diversas histórias de superação e transformação da realidade que apontam um caminho a seguir.
Em tempos de crise é difícil não olhar o futuro com pessimismo. As mudanças acontecem muito lentamente e os retrocessos ferem de morte essa caminhada, desanima e causa desespero.
“Como nós imaginamos um mundo melhor e levantamos questões que nos permitam ver além do que nós é oferecido?” Angela Davis.
Dialogando e conhecendo a experiência de Catadores de materiais recicláveis de várias partes do mundo é possível reconhecer em sua prática uma essência criativa do ser humano ao transformar seu meio mesmo em condições adversas. No continente africano, por exemplo, as catadoras e catadores se dedicam a coleta de ossos que são transformados e joias e adereços. Na Índia, a categoria coleta resíduos orgânicos e os transforma em gás para uso doméstico. Na França, onde a coleta de resíduos nas ruas é crime grave e onde as catadoras e catadores existem há séculos, a categoria se dedica a recuperar móveis, roupas e eletrodomésticos.
As adversidades pessoais são ainda mais desafiadoras, pois significam confrontar conflitos internos frutos de anos de traumas, negação e violência. A categoria de Catadores é fonte de inspiração nesse quesito também, porque são inúmeros os casos de superação e transformação da saúde física e mental por meio do trabalho. Não o trabalho alienado, mas o trabalho solidário, esse que dá sentido à vida, que educa diariamente e que permite o desenvolvimento integral, que estimula a resolução de conflitos sempre com apoio da comunidade. São as cooperativas, associações e grupos os impulsionadores dessa transformação.
Esse modo de organização está na contramão do mundo capitalista da atualidade. O moderno e aceito socialmente é ser o empreendedor, aliar-se às novas tecnologias para mudar de vida, sozinho. Os aplicativos, ‘startups’ e grandes conglomerados de dados facilitam para que a classe trabalhadora se desconecte da comunidade e possa ser explorada individualmente. E 85% da categoria de catadoras e catadores ainda trabalha informalmente de modo individual, um prato cheio para quem quer enriquecer as custas dos pobres.
Mas o individualismo não é algo novo. A utopia do MNCR é ver todas a catadoras e catadores organizados, trabalhando de modo coletivo, e por meio da reciclagem popular compartilhar a riqueza e o conhecimento gerados dos resíduos sólidos.